O economista Maurício Mulinari.

Reforma administrativa: esvaziamento do caráter social e preservação dos interesses do grande capital

Por Mauricio Mulinari
Economista e doutorando em Serviço Social pela UFSC, assessor econômico de entidades sindicais

A proposta de reforma administrativa em debate no Congresso Nacional, conquistou as assinaturas necessárias e transformou-se na PEC 38/2025. A proposta tem mobilizado forte e justa oposição da representação sindical dos servidores públicos brasileiros. Ela integra um conjunto mais amplo de medidas voltadas à reconfiguração do Estado brasileiro. Apresentada por parte do parlamento sob os argumentos de modernização da gestão pública, aumento de eficiência e redução de custos, essa reforma deve ser compreendida como parte de um projeto político de transformação estrutural do Estado em sentido gerencial, privatista e fiscalmente restritivo. O objetivo implícito é dar continuidade e aprofundar o novo perfil do Estado inaugurado a partir das reformas neoliberais dos anos 90: esvaziado de caráter social e orientado exclusivamente para a preservação dos interesses do grande capital.

A reforma administrativa não se limita a alterar regras de contratação, estabilidade e carreiras, ela vem no sentido de aprofundar a lógica de resultados de curto prazo, reduzir a oferta de bens e serviços voltados à população e ampliar os mecanismos de subordinação da ação estatal à disciplina orçamentária seletiva – orientada a garantir superávits primários capazes de fazer frente ao pagamento religioso dos juros da dívida pública. Essa reforma articula, portanto, três dimensões centrais:

  • Reestruturação organizacional e gerencial, que visa aprofundar a implementação de um modelo gerencial baseado em metas e indicadores de desempenho, espelhando as práticas generalizadas no setor privado e responsáveis pelo adoecimento massivo dos trabalhadores.
  • Reestruturação das relações de trabalho, ao reduzir garantias funcionais democráticas (como estabilidade e progressão na carreira), ampliar contratações temporárias precárias e fragilizar a organização sindical dos servidores.
  • Reestruturação fiscal, que consolida e amplia os mecanismos de controle seletivo sobre o gasto público, particularmente com pessoal, operando como complemento à desastrosa política de teto de gastos, desde 2016 em vigor no Brasil.

Dentro desse conjunto, o caráter fiscalista da reforma assume papel central, pois é ele que engloba as demais medidas dentro de um horizonte coeso e adequado aos interesses do grande capital: manter o Estado permanentemente submetido a limites orçamentários rígidos, em nome de uma suposta “responsabilidade fiscal” que, na verdade, orienta parte expressiva do orçamento para concessão de estímulos de caráter financeiro e fiscal ao grande capital – seja ele local ou internacional.

Contexto neoliberal pós-2008

Já desde as contrarreformas estruturais iniciadas mundialmente nos anos 1980 que o capitalismo opera em sua fase neoliberal. Nesse quadro, a crise financeira de 2008 marcou um ponto de inflexão nas políticas econômicas em escala global. As economias centrais responderam ao colapso do sistema financeiro com pacotes de estímulo ao grande capital e políticas de salvamento bancário. A conta não tardou em alcançar as grandes massas trabalhadoras, com os Estados nacionais – incluindo o Brasil – implementando contrarreformas trabalhistas, sociais, previdenciárias e, no âmbito das políticas públicas, estratégias de austeridade fiscal seletiva e contenção de gastos públicos voltados à maioria da população.

No Brasil, essas diretrizes foram incorporadas por meio de sucessivas reformas estruturais: a reforma trabalhista (2017), a reforma da previdência (2019) e o teto de gastos instituído pela Emenda Constitucional nº 95/2016, que congelou as despesas primárias da União. A partir desse marco, consolidou-se a política nacional de austeridade seletiva – isto é, restritiva apenas sobre os gastos sociais e as despesas com os servidores públicos, ao passo que os incentivos fiscais, as renúncias tributárias e os pagamentos da dívida pública continuaram e continuam a crescer.

A reforma administrativa surge, portanto, como etapa complementar da fase de crise do neoliberalismo, buscando institucionalizar o controle fiscal sobre todas as esferas do Estado, inclusive estados e municípios, com o pretexto de “sustentabilidade orçamentária”. Na prática, porém, promove a “desresponsabilização” do Estado quanto às suas funções sociais, historicamente conquistadas pela luta da classe trabalhadora organizada com expressivo protagonismo sindical.

Caráter fiscalista da reforma administrativa

O núcleo fiscalista da reforma administrativa está presente tanto em seu desenho institucional quanto em seus efeitos econômicos. A PEC 38/2025 e as propostas correlatas partem da premissa de que o principal problema das contas públicas é o custo com pessoal, retirando a questão do financiamento estatal de uma reflexão mais profunda sobre a estrutura de classes da arrecadação – em um país em que as receitas tributárias são majoritariamente arrecadadas sobre o consumo e a renda da classe trabalhadora – ou sobre as prioridades na destinação orçamentária – que diante do sequestro do orçamento pelo grande capital, pelo parlamento corrompido na hipertrofia das emendas parlamentares e pela infiltração de parcerias público-privadas (PPP), perdeu quase que integralmente seu rarefeito caráter democrático instituído na Constituição de 1988.

No caso da reforma administrativa, esse princípio fiscalista é operacionalizado de três formas:

  • Vinculação aos tetos de gastos existentes: a reforma não cria formalmente um novo teto de gastos, mas estende o regime de contenção fiscal da União para os demais entes federados, transformando em norma geral o que antes era uma restrição exclusiva da esfera federal. Assim, a contenção de gastos deixa de ser uma política permanente de controle de gastos sociais, que já é regra em nível federal, torna-se uma amarra permanente de funcionamento da integralidade dos entes do Estado brasileiro. Na prática isso ocorre por três mecanismos: i) mecanismos automáticos de suspensão de reajustes, congelamento de progressões e proibição de novas contratações em torno dos limites rígidos da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF); ii) transferências condicionadas da União para os entes subnacionais, impondo a adoção de políticas de contenção despesas para a manutenção de empréstimos e outros recursos federais; e iii) regras de desempenho e eficiência como critério de alocação orçamentária, com a possibilidade das unidades administrativas que não cumprirem metas gerencialistas de desempenho terem seus orçamentos reduzidos.
  • Flexibilização das relações de trabalho no setor público: ao propor o fim da estabilidade para novos servidores e ampliar as formas de contratação temporária e precária, a reforma visa reduzir o comprometimento de longo prazo com a folha de pagamento. Amplia com isso o descompromisso com a qualidade do serviço prestado e aumenta a margem para o assédio político e a corrupção no interior do serviço público.
  • Indução de “reformas administrativas internas” nos entes federados: a pressão para cumprimento de metas fiscais leva os estados e municípios a internalizarem políticas de enxugamento de quadros, terceirizações e congelamento salarial, o que equivale, em termos práticos, à imposição de tetos de gastos locais, mesmo onde não há previsão constitucional direta para tanto.

Em síntese, o caráter fiscalista da reforma administrativa consiste na ampliação de mecanismos que reforcem um regime fiscal permanente de austeridade seletiva. Comprimem-se os recursos para as áreas sociais do Estado e redireciona-se o fundo público para o grande capital. Sob o discurso da eficiência, esconde-se um processo de redirecionamento da estrutura pública para atendimento exclusivo dos interesses das elites econômicas, restringindo a capacidade de investimento e de prestação de serviços públicos que atendam a maioria da população.

Referências

BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição nº 32/2020. Câmara dos Deputados, Brasília, 2020.

NEPOMUCENO, Vladimir. Reforma Administrativa e Desmonte do Estado Brasileiro. Brasília: Diap, 2021.

DWECK, Esther; ROSSI, Pedro; OLIVEIRA, Ana Luíza Matos de. Austeridade e Retrocesso: Finanças Públicas e Política Fiscal no Brasil. São Paulo: Autonomia Literária, 2018.

MARQUES, Rosa Maria; NAKATANI, Paulo. Crise e Ajuste Fiscal no Brasil: Os Limites do Neoliberalismo. Campinas: IE/Unicamp, 2017.

PRATES, Daniela Magalhães. A crise de 2008 e o novo padrão de dependência financeira periférica. Revista de Economia Contemporânea, v. 16, n. 2, 2012.

CASTRO, Jorge Abrahão de; CARDOSO JR., José Celso. O Estado como problema e como solução: notas críticas sobre a PEC 32/2020. Ipea, Brasília, 2021.

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