Um fim de semana para refletir sobre o direito ao tempo e fortalecer a construção coletiva. O 1º Encontro de Coletivos do Sinjusc reuniu cerca de 100 pessoas nos dias 12 e 13 de setembro, em Florianópolis. Com uma programação diversa que alternou debates, lançamento da 10ª edição da revista Valente, atividades culturais e um dia inteiro de vivência no Quilombo Vidal Martins, o encontro também foi um espaço de troca de afetos.
Com abertura prestigiada por parlamentares e representantes de entidades e sindicatos, o evento mostrou a relevância e o reconhecimento do tema junto às organizações da sociedade civil. O diretor Samuel Silva, as diretoras Ellen Caroline Pereira e Liliane Fatima Araújo dividiram o palco com a coordenadora de Gênero, Etnia e Geracional da FENAJUD, Ana Carolina Lôbo; o integrante do Coletivo de Negras e Negros, Wagner Luis Padilha; e Dinara Joana Orlandi Pasa, que também faz parte do Coletivo Valente.
A programação contou com a participação de servidores(as) e convidados(as) especiais nas mesas de debate. Ao final, a presidenta Carolina Rodrigues Costa acolheu as contribuições dos presentes para um manifesto por uma atuação sindical comprometida com a diversidade: “Nós, Coletivo Valente e o Coletivo de Negras e Negros do Judiciário Catarinense, firmamos nosso compromisso em conduzir nossa atuação com o Sinjusc e enquanto Sinjusc, disputando a tecnologia para que ela favoreça o nosso tempo para ofertamos um serviço público de qualidade, e disputando nosso tempo para que exista vida além do trabalho, cabendo espaço para a alegria”, diz o documento. LEIA A CARTA NA ÍNTEGRA
Integrante de ambos os coletivos, a diretora Ellen Caroline Pereira disse que o encontro alcançou todos os objetivos e mostrou a potência da luta coletiva. “A gente tocou em temas bastante difíceis, mas que precisavam ser falados, e também conseguiu perceber o quanto é potência juntas, juntos, juntes. Estamos sim seguindo um caminho de construção, de um sentido coletivo da vida, para um mundo que seja bom para todas as pessoas viverem”, avaliou.
VEJA AS FOTOS E RELEMBRE – Crédito: Ana Araújo
FORÇA COLETIVA
Formados por trabalhadores do Judiciário catarinense para aprofundar debates e promover ações de fortalecimento da luta da categoria, os coletivos do Sinjusc vêm consolidando entendimentos sobre o mundo do trabalho, tanto a partir do Judiciário quanto junto à sociedade catarinense, a partir da perspectiva interseccional.
“O coletivo de negras e negros do Sinjusc, para mim, é símbolo de força, acolhimento e proteção, principalmente como pessoa negra”, disse Jonathan Bezerra Peixoto. “Ele nasceu da partilha do dia a dia no Judiciário. Toda essa questão do racismo estrutural fez com que nos uníssemos para criar um lugar para nos proteger, e também proteger os nossos colegas pretos e as mulheres do machismo”.
Lotado há apenas duas semanas na Comarca da Capital, João Caio Ferreira teve sua primeira participação em uma atividade do Sinjusc no Encontro de Coletivos. “Fiquei surpreso com a maturidade política e o acúmulo que o sindicato e a categoria têm em relação a sistemas interseccionais. Me senti muito acolhido”, contou.
REDUZIR A JORNADA DE TRABALHO E TECER NOSSA ORGANIZAÇÃO PARA TRAMAR NOSSOS SONHOS
As assimetrias que colocam pessoas brancas e negras em diferentes níveis de acesso aos direitos sociais básicos – entre eles, o próprio direito ao tempo – estão nas raízes da formação do povo brasileiro. “As primeiras ações afirmativas foram as políticas de incentivo à vinda dos imigrantes europeus”, lembrou Karen Santos, palestrante da noite de abertura, em debate que contou com mediação do integrante do Coletivo de Negras e Negros do Judiciário catarinense, Constantino Azevedo do Nascimento.
Mestranda em educação pela UFRGS, Karen estuda a estruturação histórica das políticas afirmativas no Brasil. Além disso, é vereadora em Porto Alegre, eleita com o maior número de votos em 2020. Em sua fala, Karen contextualizou como as cidades e os serviços públicos, como saúde, educação e transporte se organizam para tratar pessoas como commodities, seguindo a lógica do capitalismo que coloca o lucro acima da vida, o que estrutura os desafios para que o tempo seja reconhecido como amplo direito.
A palestrante observou que a última década foi marcada por grandes avanços em lutas sociais, como reconhecimento de terras indígenas e quilombolas, mas também de muitas derrotas para a classe trabalhadora. Segundo a vereadora, a precarização do trabalho e dos sindicatos, a partir da nova norma em que o acordado prevalece sobre o legislado, fragiliza a organização da sociedade. “A gente aprende política no sindicato, negociando com o patrão, percebendo os atores sociais. Estão tirando esse instrumento de luta dos trabalhadores e trabalhadoras”, observou.
Diante do contexto histórico e dos efeitos sociais da precarização do trabalho e na atual fase do capitalismo, afirma Karen, é preciso que os sindicatos e as organizações que reconhecem a importância da democracia e do avanço de direitos não percam de vista a relação da economia com a política.
“Educar politicamente é um papel nosso, dos movimentos sociais. Por isso é tão importante o que vocês estão fazendo aqui. Não dá pra esperar pelo estado. Temos uma gama de pautas que precisam ser combinadas e nosso desafio é discutir o projeto que a sociedade precisa”, disse.
A última atividade da noite de abertura foi o lançamento da décima edição da Revista Valente que trata sobre a luta pelo direito ao tempo e a redução da jornada de trabalho.
COMPREENDER A CLASSE TRABALHADORA EM SUA DIVERSIDADE PARA USUFRUIRMOS DE OUTROS TEMPOS
A partir dos seus lugares de luta, movimentos coletivos transformam realidades coletivas e projetam novas sociedades. A primeira mesa do sábado provocou o público a refletir sobre as assimetrias do acesso ao uso do tempo e como os movimentos sociais se organizam para a resistência. A servidora da Comarca de Porto Belo, Soraia Joselita Depin, mediou o debate que contou com lideranças representativas de movimentos sociais.
O professor e ex-vereador da capital, Marcio de Souza, lembrou que a população negra ofereceu ao Brasil a primeira experiência de República, ainda no Império. “Palmares foi uma composição de diversidade étnica e cultural. Lá se abrigaram indígenas, europeus refugiados da colônia, judeus. Esse experimento de sociedade já existia numa organização política que teve quase cem anos de existência”, afirmou.
Representando o Movimento de Mulheres Camponesas, a jornalista Adriane Canan falou sobre a riqueza que vem da contribuição econômica e social das mulheres do campo, inspiradas pelas tecnologias indígenas e quilombolas. Segundo a convidada, o trabalho e a contribuição das mulheres do campo na economia é invisibilizado. “As mulheres da agroecologia produzem PIB não registrado na economia do país. Trabalham nas hortas, nos seus quintais produtivos. Acordam às 5h da manhã e só param de trabalhar às 11 da noite. Precisamos criar um diálogo entre o campo e a cidade para debater essas questões”, afirmou.
O antropólogo Lino Gabriel Santos provocou o público a pensar sobre a relação da exploração do tempo na construção dos papeis de gênero. Idealizador de grupos de estudos sobre transexualidades, Lino questionou o tempo gasto pelos indivíduos para performar estéticas femininas e masculinas e como esses conceitos se alinham com a colonialidade. “A identidade é uma performance”, declarou. O tempo também é escasso para as pessoas trans. Lino lembrou que a expectativa de vida dessas pessoas no Brasil é de 35 anos.
A realidade das comunidades que lutam pelo reconhecimento do direito ao territórios foi apresentada durante o Encontro de Coletivos pela presidenta da Associação dos Remanescentes do Quilombo Vidal Martins, Helena Jucélia Vidal Martins. Helena compartilha com liderança de diversos outros territórios brasileiros o desafio de enfrentar entes públicos e privados na disputa por terras ancestrais. Na maioria dos quilombos, a linha de frente é ocupada pelas mulheres, assegura. São elas que permanecem nas terras, resistindo ao apagamento, à burocracia e à violência dentro e fora dos territórios. “A gente precisa o tempo todo justificar que estas terras são nossas e que fomos roubados. Perdemos tanto tempo ensinando os de fora que falta tempo para ensinar os de dentro”, afirmou, contando que a falta de formação das comunidades também é uma ameaça. “Costumo dizer que o movimento negro é luta. Quilombo é resistência”.
“PENSAR A INTERSECCIONALIDADE E REIVINDICAR O SENTIDO DO NOSSO TRABALHO PARA DEMOCRATIZAR O JUDICIÁRIO”
A terceira mesa do dia abriu espaço para as vivências dos servidores e servidoras do Judiciário no desafio de garantir o acesso à justiça aos usuários em Santa Catarina. O debate mostrou como a precariedade da estrutura, a sobrecarga de trabalho, as numerosas horas extras e, por vezes, a violação dos seus próprios direitos interferem na democratização do acesso ao sistema e levam ao adoecimento. A discussão contou com a mediação da Técnica Judiciária Auxiliar do TJSC e integrante dos coletivos, Catia Cilene Diogo Goulart.
A partir da experiência com processos judiciais envolvendo imigrantes haitianas, a Assistente Social da Comarca de Porto Belo Fernanda Ely Borba falou sobre como o racismo impede o pleno acesso aos direitos e revitimiza mulheres que chegam ao país fugindo da violência no seu país de origem. Segundo Fernanda, que estuda e atua em casos do gênero há quase dez anos, questões patriarcais e raciais atravessam os processos envolvendo essas imigrantes de diferentes maneiras. “O racismo ronda o acompanhamento dos processos, a começar pelo apagamento de informações sobre raça e cor, que exclui essas mulheres das narrativas”. Essa complexa realidade, reforçou, impõe aos trabalhadores/as do Judiciário uma sensação de impotência e evidencia a urgência do letramento racial transversal no sistema de justiça.
A servidora Ivone Ester Vidal Borges compartilhou com o público um relato sobre sua vivência na implementação de mecanismos para garantir que mulheres vítimas de violências possam usufruir de garantias do tratado internacional e também de dispositivos previstos na Lei Maria da Penha e no Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero do CNJ. A dedicação à implementação do balcão virtual, elaboração de manuais e treinamentos e ainda a superexposição a casos de violação de direitos levou a servidora ao adoecimento. “A Lei Maria da Penha criou um micro sistema de proteção que está entre os mais evoluídos no mundo, mas implantar esse sistema tão inovador exige mudanças profundas e a gente acaba tomando a frente”, observou. Quando a produtividade caiu em função do adoecimento, enfrentou ainda a desvalorização do seu trabalho. “Como trabalhadora e como mulher, a militância nos atravessa, mas quem cuida da trabalhadora quando ela adoece?”, perguntou.
As numerosas barreiras para o acesso de pessoas periféricas à justiça, que perpetuam ciclos de exclusão e vulnerabilidade, foram colocadas em evidência na participação do servidor Jonathan Bezerra Peixoto. Ele compartilhou com os/as participantes do encontro a sua perspectiva como trabalhador jovem, preto e periférico que percebe os múltiplos desafios de quem precisa lidar com protocolos burocráticos e convenções distantes da sua realidade para ter direitos básicos garantidos. “A violência, muitas vezes, já começa no atendimento no fórum. Se a pessoa não é alfabetizada, então, o Judiciário se torna completamente inacessível”, afirmou, relatando diversos casos que viveu como trabalhador no Juizado Especial. Diante desse contexto, Jonathan reconheceu os limites dos servidores, mas evocou a sensibilidade dos colegas que atuam no atendimento ao público. “Como trabalhador, a gente tem que ser empático e ter solidariedade. Pensar em tudo o que a pessoa já passou para estar ali”, disse.
A dirigente Jaqueline Maccoppi observou que a pressão por alcançar o selo do CNJ vem fortalecendo uma cultura produtivista dentro do tribunal, sem, entretanto, ampliar a estrutura necessária. A diretora lembrou ainda que a nova reforma administrativa em discussão no congresso pretende atribuir juízos meritocráticos para o serviço público. “Além dos servidores, quem mais perde é quem precisa da justiça, pois dentro dessa lógica, o jurisdicionado se torna ‘cliente'”.
RESISTIR ENQUANTO CLASSE TRABALHADORA DISPUTANDO O NOSSO TEMPO PARA UMA VIDA COM ALEGRIA
Os relatos de duas mulheres à frente dos sindicatos que representam trabalhadores/as do Judiciário encerrou a programação de debates do Encontro de Coletivos do Sinjusc.
A coordenadora-geral do Sindjus-PR, Andréa Ferreira, entrevistada da 10ª edição da Revista Valente (LINK), falou sobre como a luta também alimenta a alegria. “O capitalismo quer a gente chorando. Sou a primeira mulher negra presidente do sindicato em 35 anos e já fui criticada por posar para fotos sorrindo. E a minha resposta foi que dá pra fazer a luta sorrindo. Não é sempre. Acho que todo mundo que está aqui entende a luta e fez a sua escolha. Mas nós temos umas às outras para nos amparar. Por isso, choramos sim, mas depois, podemos celebrar”, afirmou.
A presidenta do SINJUSC, Carolina Rodrigues Costa, falou sobre como a luta sindical dá sentido à vida. “Neste sindicato, aprendi que a gente pode ser falível. O sindicato me deu compreensão de mediação, deu coragem, gente maravilhosa e também cansaço. É uma vida atribulada, mas pior que isso é uma vida vazia. A vida com os companheiros e as companheiras é mais bonita”, disse.