Ilustração: Paula Schlindwein

Proteção da comunidade LGBTIQA+ no judiciário e a quebra de paradigmas cisheteronormativos

*Josiane Censi e Jaqueline Maccoppi

Como os operadores do direito vêm lidando com questões que envolvem a comunidade LGBTIQA+? Essa é a pergunta que orientou este texto. Pretende-se discorrer sobre alguns direitos, diretrizes e julgados envolvendo a proteção das minorias sexuais, com ênfase no Judiciário.

A começar pela análise do tratamento das minorias sexuais no âmbito penal, merece destaque o Manual Resolução nº 348/2020[1], lançado pelo CNJ em 2020, que visa implementar a dita resolução, estabelecendo procedimentos de redução de vulnerabilidades de pessoas LGBTQIA+ acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade, assegurando a proteção dessas nos sistemas de justiça criminal e juvenil.

Invocando os direitos humanos e documentos internacionais dos quais o Brasil é signatário, o manual apresenta pressupostos gerais da atuação de Tribunais e autoridades judiciais em casos criminais envolvendo pessoas acusadas, rés ou condenadas LGBTQIA+, remetendo aos princípios dispostos no artigo 2º da Resolução 348/2020[2], quais sejam:

  1. Garantia do direito à vida e à integridade física e mental da população LGBTI, assim como à integridade sexual, segurança do corpo, liberdade de expressão da identidade de gênero e orientação sexual;
  2. Reconhecimento do direito à autodeterminação de gênero e sexualidade da população LGBTI; e
  3. Garantia, sem discriminação, de todos os direitos sociais, como saúde, estudo e trabalho, previstos nos instrumentos legais e convencionais relativos à população privada de liberdade, em cumprimento de alternativas penais ou em monitoração eletrônica, bem como a garantia de direitos específicos da população LGBTI.

Outrossim, o documento elenca conceituações norteadoras para a identificação da população LGBTQIA+, a qual se dá exclusivamente pela autodeclaração (a pessoa identifica a si mesma, declarando sua identidade de gênero e orientação sexual), o que deve ser levado em conta durante todo o procedimento penal, inclusive na audiência de custódia e até a extinção da punibilidade pelo cumprimento da pena, sobretudo porque o sistema de justiça criminal e os ambientes prisionais ou socioeducativos são significam, não raro, maior vulnerabilidade além daquela já experimentada na sociedade. Violências institucionais dos agentes, bem como assédios dos próprios presos e internados são comuns dentro desses estabelecimentos, como é sabido.

Além disso, o manual observa que todas as pessoas que sofrem algum processo penal devem ser tratadas pelo nome e prenome escolhidos, devendo, assim, serem mencionadas na Guia de Recolhimento à unidade prisional ou socioeducativa. Isso se dá pelo direito ao nome social, que inclui a identidade sexual e de gênero, e a faculdade de se autonominar nos registros e nos documentos de identidade. Nesse sentido, vale lembrar que o Supremo Tribunal Federal (STF), no RE nº 670.422/RS, sedimentou o entendimento de que os registros civis podem ser alterados mesmo quando não há submissão a procedimentos cirúrgicos ou a tratamentos hormonais.

Ainda é importante ressaltar que o manual determina a observação da identidade de gênero e orientação sexual na tomada de decisão relativa à definição do local de privação de liberdade; relatos de violência ou grave ameaça e especificidades de mulheres LGBTQIA+, questionando-se a preferência da pessoa presa ou internada, para que todos fiquem em local que possa garantir segurança a essa população, pontuando, ainda, a excepcionalidade da prisão provisória, com fulcro no disposto no art. 10 da resolução[gn1] , em relação a pessoas LGBTQIA+ gestantes, lactantes, mães e responsáveis por crianças menores de doze anos ou pessoas com deficiência (art. 318 e 318-A do CPP).

Por fim, remete à necessidade de maior assistência à saúde, com garantia de tratamento hormonal e sua manutenção; acompanhamento de saúde específico e garantia de testagem; garantia de atendimento psicológico e psiquiátrico e cuidados especiais com a COVID-19. No mesmo sentido, assistência religiosa, acesso ao trabalho, à educação e às demais políticas ofertadas nos estabelecimentos prisionais e socioeducativos, entre outros, que devem ser implementados em toda a justiça nacional.

Denota-se, desse modo, que há uma reconhecida preocupação em relação às minorias sexuais, sendo imperioso, no entanto, aguardar lapso suficiente para averiguar respostas e adequações, que devem ser cobradas e respeitadas para que as disposições se tornem verdades práticas.

Partindo para uma perspectiva dogmática em relação aos direitos das minorias sexuais nas decisões do Judiciário, fez-se uma pequena pesquisa jurisprudencial no sítio do Tribunal de Justiça, por intermédio das categorias “homossexual”, “transexual”, “intersexual”, “homofobia” e “transfobia”, sem marco temporal, com o intuito de avaliar, ainda que de forma muito sutil, de que forma os operadores do direito vêm lidando com os direitos sexuais das minorias.

Em relação aos termos “homofobia” e “transfobia”, não foram encontrados resultados. Pelas categorias “homossexual”, “transexual” e “intersexual”, no entanto, encontraram-se 28 processos. Foram considerados, para fins de análise, apenas 15 processos, uma vez que foram excluídas decisões concernentes a conflitos de competência (6), bem como relacionadas a questões dogmático-penais (5) e a questões não diretamente ligadas ao gênero (2).

Desses 15 processos, 7 tratam de apelações cíveis em ações de retificação de gênero no registro civil. Em todos, a sentença de origem foi procedente, mas houve recurso do Ministério Público. O fundamento encontrado nas ementas está relacionado à “desnecessidade de realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo”[3]. Todos os recursos foram providos, e todas as 7 apelações são posteriores ao julgamento do RE nº 670.422/RS, de 11/9/2014.

Nesse ponto, importante frisar que houve, recentemente, a edição do provimento nº 122, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), cujo teor dispõe sobre o assento de nascimento no Registro Civil das Pessoas Naturais nos casos em que o campo “sexo” da Declaração de Nascido Vivo ou na Declaração de Óbito fetal tenha sido preenchido como “ignorado”, autorizando que o assento de nascimento assim seja lavrado (artigo 2º). Desobrigar o preenchimento do campo “feminino” ou “masculino” apresenta esperança no sentido de propiciar experiências menos traumáticas às pessoas intersexo, reconhecendo que o sexo biologizante não define a orientação sexual, tampouco fixa a identidade de gênero. Além disso, viabiliza a espera para eventual definição de acordo com sua autodeclaração.

Voltando à pesquisa jurisprudencial, dos outros 8 processos, 5 são apelações igualmente interpostas pelo Ministério Público por ocasião da procedência de pedido de habilitação para casamento homoafetivo. Pelo que se denota das ementas, o parquet insurgiu-se suscitando “a ilegalidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo”, contrariando a Resolução 175 do CNJ, de 14 de maio de 2013, anterior às apelações. Dos 3 processos restantes, 2 eram relacionados ao reconhecimento e dissolução de união estável homoafetiva, nos quais foi reconhecida a união estável de pessoas do mesmo sexo como entidade familiar.

O último caso analisado, por fim, merece atenção. Trata-se de apelação interposta pelo Ministério Público contra sentença que deferiu a inscrição de casal homossexual à adoção. A apelação foi desprovida, e a ementa do acórdão menciona[4]:

Critérios recursais discriminatórios, infundados e desarrazoados. Pretensão de descobrir a “gênese” da homossexualidade e os “papéis” que cada um exerce no âmbito relacional. Pleito que esbarra na dignidade humana dos requerentes e na necessidade de tratamento igualitário. inteligência dos arts. 1º, III, 3º, IV, e 5º, I, da Constituição Federal. Precedente do STJ. Habilitação deferida. Sentença mantida.

Como se vê, o padrão heteronormativo afeta o operador do direto: o Ministério Público, em seu recurso, trouxe sua visão sobre os padrões de identidade normativo de gênero, questionando qual seria o “papel” dos adotantes, em conduta tipicamente discriminatória. A manifestação ministerial apoiou-se numa definição binária de gênero para expor que o casal homossexual era inadequado para adotar os menores, gerando as condições perfeitas para fomentar a homofobia.

Por ocasião do julgamento, houve, depois, manutenção à habilitação dos adotantes homossexuais, demonstrando, felizmente, o alinhamento entre o aporte teórico e debates políticos identitários do campo do gênero com a decisão proferida. Contudo, o caso deixa claro que ainda há, mesmo dentro do Judiciário, tentativas de se impor um padrão normativo no qual a ininteligibilidade do casal homossexual afetou a capacidade de enquadramento dos pretensiosos pais nos categorizados papéis de “pai” e “mãe” dentro de um padrão cisheteronormativo.

Em pareceres, manifestações, decisões ou qualquer outra peça que o operador do direito possa produzir já não são mais toleráveis termos preconceituosos superados desde as pretéritas discussões que ensejaram os eventos internacionais e nacionais ao longo dos anos, e que refletiram na CF/88, nos artigos 5º, 6º e 7º, e nos artigos 194 e 224.

Tem-se, como aporte, em nosso sistema jurídico, os princípios da dignidade, da liberdade e da igualdade, e, com base nisso, os Tribunais Superiores têm, reiteradas vezes, promovido reformas e se posicionado de forma a viabilizar a aspiração à liberdade sexual na sociedade no enlaço de ampliação dos direitos sexuais, impulsionando os direitos antidiscriminatórios como um dos caminhos para afastar a cisheteronormatividade.

Recentemente, vale citar ainda, o TJSC proferiu uma decisão inovadora, afastando a dualidade de gênero e reconhecendo o direito da pessoa de declarar seu gênero como neutro. Em entrevista, a magistrada assevera:

Somos governados por leis que nos põem em caixas, existem algumas que são necessárias, mas por um tempo, que talvez daqui 50 anos podem ser não mais. Só poderemos conviver bem quando essa minoria, que é marginalizada, estiver sendo reconhecida e seus direitos assegurados. Se ela não vai bem, também não vamos bem, o tecido social todo deve estar em sintonia.[5]

À guisa de conclusão, pode-se dizer que a proteção da comunidade LGBTQIA+ no Judiciário ainda não é uma realidade prática satisfatória, havendo certo conservadorismo e relutâncias baseadas na cisheteronormatividade por parte de alguns operadores do direito, a exemplo da atuação do órgão do Ministério Público, o que chama atenção no panorama apresentado. Há que se reconhecer, de outro lado, importantes avanços legais, normativos e jurisprudenciais. A proteção do Judiciário às minorias sexuais com o reconhecimento de neutralidade de gênero oxigena o debate no campo da sexualidade e ganha força na conjuntura política. Ainda que seja feita a crítica institucional, a validação do Estado expande a discussão de gênero, ampliando questões teóricas que antes não chegavam nesses espaços de poder.

Censi é militante feminista, antirracista, antifascista, servidora do TJSC, com formação em direito, amante de felinos, integrante do 8MSC e da Frente Catarinense de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto, e compõe a coordenação do Coletivo Valente.

Maccoppi é TJA. Mestranda em Direito do Estado pela UFPR. Pesquisadora do Núcleo de Criminologia e Política Criminal da UFPR e do Núcleo de Estudos em Ciências Criminais da FAE. Especialista em Direito Público (FURB) e em Direito Penal, Proc. Penal e Criminologia (AbdConst).


[1] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/06/manual_resolucao348_LGBTI.pdf. Disponível em 21 set. 2021.

[2] Disponível em < https://atos.cnj.jus.br/files/compilado15421720210126601038596c499.pdf>. Acesso em: 21 set. 2021.

[3] Ressalta-se a impossibilidade de acesso ao inteiro teor, visto que se trata de processos que tramitam em segredo de justiça.

[4]  TJSC, Apelação Cível n. 0002583-11.2017.8.24.0036, de Jaraguá do Sul, rel. Marcus Tulio Sartorato, Terceira Câmara de Direito Civil, j. 13-03-2018.

[5] Disponível em: <https://catarinas.info/a-nao-binariedade-e-milenar-afirma-juiza-que-admitiu-genero-neutro-em-sc/>. Acesso em 21 set. 2021.

PUBLICAÇÕES DA REVISTA VALENTE|

Esse texto foi originalmente e de forma exclusiva, escrito para a 6ª edição da Revista Valente. Para ler o artigo na revista ou ouvir o áudio texto, CLIQUE AQUI.


 

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