Paula Schlindwein

I.A, e eu com isso?

Por Cristiane de Pádua Ferreira*

IA, e eu com isso?

Recentemente meu mundo cor de rosa foi invadido pelo tema da reforma da previdência. O universo paralelo da política que por vezes ignoramos nos atingiu. A nova perspectiva de trabalhar até os 62 anos de idade me assombra pois percebo que posso morrer antes ter tido o “privilégio” de me aposentar e finalmente “aproveitar” a vida. Pelos novos critérios, tenho ainda 25 anos de trabalho e me pergunto: o que esperar desses próximos anos?

Nos últimos 10 anos, vimos grandes alterações nas relações de trabalho. Surgiram os motoristas de aplicativos como o Uber e o Ifood. Eles não são empresários ou empreendedores. São apenas pessoas que saem para trabalhar todos os dias sem saber quantas horas trabalharão e muito menos quanto de dinheiro levarão para casa no final do dia ou no final do mês. Estão totalmente sujeitos aos comandos de uma empresa sem serem empregados ou terem qualquer direito garantido.

Eles compartilham a experiência de serem diretamente ou indiretamente controlados pela inteligência artificial (IA) que gerencia seus itinerários e valora seus serviços. É o sistema que define por quais ruas irão passar e quanto receberão, pois, os valores das corridas dependem da lógica do mercado da oferta e da procura.

A IA tem sido recebida pelo meio empresarial e governamental como a resposta para todos os males. Afinal, um programa de computador pode ser altamente produtivo sem nunca precisar de folga, férias nem licença maternidade ou paternidade. Mesmo que o custo para obtenção e treinamento do sistema ainda seja elevado, esse custo pode compensar ao longo dos anos pelo ganho em escala.

No método tradicional, para formar um médico, precisa-se investir tempo e dinheiro e “depois de dez anos de estudo e residências, tudo que daí se obtém é um único médico”[1]. Por outro lado, quando forem superadas as dificuldades técnicas que envolvem o treinamento de uma máquina em uma tarefa específica, será possível replicar tal máquina quantas vezes quiser sem demandar o mesmo tempo inicial de treinamento.

Kai-Fu Lee alega que milhões de empregos burocráticos como contadores e analistas jurídicos desaparecerão. A estimativa é que dentro de dez ou vinte anos, a IA já seja capaz de substituir cerca de 40% a 50% dos empregos nos Estados Unidos porque as máquinas “podem identificar padrões e tomar decisões em níveis que o cérebro humano simplesmente não consegue entender”[2].

Com o avanço da IA, as ferramentas de controle do trabalho humano serão ampliadas. Os trabalhadores humanos poderão ser facilmente ranqueados pelos algoritmos com base em critérios “objetivos”. Cathy O’Neil, alertou como esses algoritmos podem aumentar as desigualdades sociais, a discriminação racial e de gênero, causando injustiças em larga escala, e por isso, os classificou como ferramentas matemáticas de destruição[3].

As pessoas comuns ou até mesmo profissionais da área têm e terão dificuldades para compreender tais sistemas. A falta de transparência dos critérios embutidos dentro dos algoritmos que muitas vezes estarão protegidos por direitos autorais preocupa principalmente seus afetados. Mas, e eu com isso?

Saiba que o judiciário não vai ficar alheio à essa evolução. O STF já possui um sistema treinado com IA, o VICTOR, que “lê” alguns processos que chegam ao STF e analisa se devem ser julgados lá ou serem devolvidos. O sistema ainda está em treinamento, mas a expectativa é de que ele possa ser adaptado para os demais tribunais[4].

Diversos tribunais de justiça montaram laboratórios de inovação justamente para pesquisar e desenvolver algoritmos que “facilitem” o trabalho dos servidores e magistrados. Atualmente existem 41 projetos envolvendo o uso da IA na justiça. O TJRR lançou o sistema Mandamus[5] (Sistema Inteligente de controle de mandados) que gerencia a fila de mandados, localiza por GPS o oficial de justiça mais próximo e encaminha o mandado para o seu cumprimento e indica a melhor rota. Isso não te lembra o aplicativo Uber? O TJSC lançou recentemente uma ferramenta de busca de endereços automatizada com a justificativa de economizar o tempo do servidor e deixá-lo com atividades “mais complexas e mais dignas dos humanos”, mas se esqueceram que uma rotina de trabalho não exaustiva inclui balancear atividades complexas com menos complexas para que o cérebro não trabalhe em potência máxima durante toda a jornada.

A esteira da linha de produção aumentou a sua velocidade e complexidade sem nos consultar. Somos levados a passar cada vez mais tempo trabalhando, em uma velocidade cada vez menos confortável e com menos poder de barganha para pleitear melhorias no nosso ambiente de trabalho.

Além disso, o trabalho não representa apenas o nosso meio de sobrevivência. Ele se transformou em uma fonte de orgulho pessoal, identidade e significado da vida real. Quando as pessoas se depararem com os robôs as superando em tarefas que elas levaram anos para dominar, se sentirão fúteis e obsoletas (KAI-FU LEE, p. 206-207).

Entretanto, quem já acompanhou de perto alguém próximo se despedindo da sua vida humana, sabe que uma pessoa jamais vai pedir mais tempo de vida para poder trabalhar um pouco mais. Encarar a finitude da vida nos mostra onde estão as nossas verdadeiras joias raras.

As alterações em nosso ambiente de trabalho podem afetar muito mais do que a nossa vida financeira. Elas podem causar inseguranças sociais e psicológicas. As constantes alterações irão exigir criatividade, flexibilidade e necessidade de nos reinventar (HARARI, p. 329). Contudo, todas essas habilidades vão se tornando mais difíceis de se adquirir ou manter com o passar dos anos.

Certa vez, durante uma das minhas viagens, observei um passageiro de um avião que utilizou todo o seu longo tempo de voo (cerca de 40 min) para trabalhar em seu notebook. Estávamos viajando a 800 km/h. A mesma viagem de ônibus leva cerca de 15 horas. Enquanto isso, algumas perguntas ecoaram em minha mente e eu as(os) convido para refletir sobre elas: Por que colocamos tanto valor em nosso trabalho? Por que usamos o trabalho como um ranking social? Por que não paramos para apreciar o milagre que é estar voando entre as nuvens? Por que evitamos nos conectar com outros humanos próximos e priorizamos outros distantes? Por que sentimos orgulho de parecermos tão dedicados ao nosso trabalho? Por que deixamos o nosso trabalho invadir a nossa vida pessoal? Por que aceitamos estar 24hs disponíveis para o trabalho, mas às vezes ficamos impacientes em gastar 5 min para prestar atenção em alguém que amamos? E por fim, quem ou o quê lucrou com esse tempo que o passageiro trabalhador “ganhou”?


[1] (HARARI, Homo deus: uma breve história do amanhã. 2016, p. 319).

[2] (KAI-FU LEE, Inteligência artificial: como os robôs estão mudando o mundo, a forma como amamos, nos comunicamos e vivemos. 2019, p. 175)

[3] (O’NEIL, Weapons of math destruction: how big data increases inequality and threatens democracy)

[4] http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=422699&ori=1

[5] https://www.cnj.jus.br/solucao-de-inteligencia-artificial-de-roraima-integra-plataforma-digital-da-justica/ e https://www.youtube.com/watch?v=CShQOa94kn0 e https://www.youtube.com/watch?v=-k2nVJpSAMU

*CRISTIANE DE PADUA FERREIRA, humana, valente, servidora do TJSC, formada em Licenciatura em Física (USP), em Direito (FURB) e mestranda em Direito (UFSC).

PUBLICAÇÕES DA REVISTA VALENTE|

Esse texto foi originalmente e de forma exclusiva, escrito para a 6ª edição da Revista Valente. Para ler o artigo na revista ou ouvir o áudio texto, CLIQUE AQUI.

3 comentários

  1. A Inteligência Artificial – IA, é uma realidade que não tem volta, deve ser debatida constantemente… o ser humano antes controlava as máquinas, no futuro não muito distante será o inverso!

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